Em meio às terras secas do semiárido piauiense, uma revolução silenciosa floresce entre curvas de nível, sementes sem agrotóxicos e práticas herdadas de gerações passadas. A matéria-prima que nasce ali — o algodão orgânico cultivado por cerca de 150 famílias — hoje cruza o oceano para abastecer uma renomada marca de tênis francesa, conectando o trabalho de agricultores familiares brasileiros à sofisticação da moda europeia.
Mais do que uma boa história de exportação, trata-se de um modelo inspirador de produção agroecológica, valorização local e inclusão produtiva, que transforma não apenas a paisagem, mas a vida das pessoas envolvidas.
Miniusina traz tecnologia e aumenta valor do produto
Desde 2024, a instalação de uma miniusina de beneficiamento no município de São Francisco de Assis do Piauí, adquirida pela Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), tornou possível um salto na cadeia produtiva local. Com investimento de R$ 150 mil, o equipamento permite aos produtores entregarem o algodão em fardos — e não mais apenas em plumas —, o que agrega valor ao produto e proporciona um incremento direto na renda das famílias.
“Ao entregar o algodão beneficiado, conseguimos aumentar o valor por unidade e manter o controle da qualidade da produção desde a lavoura até a comercialização”, destaca Antônio Pereira, diretor de Agroecologia e Agricultura Periurbana da SAF. O volume anual gira em torno de dez toneladas de pluma, e a perspectiva é de crescimento à medida que a tecnologia se consolida nas associações locais.
Manejo agroecológico e parcerias técnicas fortalecem o cultivo
Com o suporte técnico da Embrapa da Paraíba, os agricultores adotam um conjunto de práticas sustentáveis que respeitam o solo, protegem o ecossistema e reduzem a vulnerabilidade da lavoura ao bicudo-do-algodoeiro — praga comum em regiões produtoras. Como o cultivo é 100% livre de produtos químicos, o controle depende de soluções naturais.
“Precisamos compreender a existência de inimigos naturais e adotar estratégias integradas, como o consórcio com milho ou macaxeira, além do uso de bioinsumos e defensivos naturais”, explica Pereira. A convivência com o bicudo, segundo ele, se torna mais equilibrada quando se preserva a biodiversidade do solo e do entorno.
Essas práticas também incluem o uso de esterco natural de bode, rotação de culturas e conservação do solo em curvas de nível. É uma agricultura que cuida da terra para que a terra continue cuidando das pessoas.
Tradição, autonomia e orgulho: o exemplo de Manoel Aragão
Na localidade de Lagoa dos Prazeres, em São Raimundo Nonato, o agricultor Manoel Aragão Ribeiro é um dos protagonistas dessa transformação. Junto de outros produtores, ele fundou uma associação formalizada em 2012, com apoio da Diaconia e da Embrapa. Desde então, sua vida e a da família mudaram de rumo.

“Esse trabalho já vem dos nossos antepassados. Formalizamos a partir do incentivo da Embrapa e da Diaconia. E hoje, esse mesmo algodão que plantamos com as mãos calça os pés de franceses do outro lado do mundo”, diz Manoel, enquanto exibe orgulhoso o tênis feito com o algodão produzido por ele.
A renda gerada com o algodão agroecológico ajudou a transformar os sonhos da família em realidade. Pai de três filhas, Manoel viu a lavoura sustentá-las até a universidade. “Uma se formou em administração e agora faz pedagogia. Outra é técnica em restaurante, e a terceira concluiu o ensino médio”, conta com emoção.
Uma cadeia produtiva que conecta campo e consumo consciente
Mais do que apenas um bom negócio, o projeto revela como a agricultura familiar pode ser protagonista de uma economia regenerativa, com práticas sustentáveis e impacto direto na qualidade de vida de seus protagonistas. Mesmo enfrentando chuvas irregulares e desafios de mercado, a comunidade construiu uma das melhores áreas de produção da região, sem agrotóxicos ou queimadas há mais de três décadas.
A crescente demanda de marcas estrangeiras por algodão orgânico certificado e rastreável tem impulsionado os debates locais sobre comercialização e verificação da origem. O selo de garantia se torna cada vez mais desejado, não apenas como um diferencial competitivo, mas como um reconhecimento da seriedade e do potencial da agricultura de base agroecológica brasileira.
“Hoje eu calço um tênis francês feito com o algodão que eu mesmo produzi”, conclui Manoel, resumindo em uma frase o elo entre o semiárido nordestino e as passarelas do mundo. Uma história que, além de orgânica, é profundamente humana.