A regulamentação do cultivo da Cannabis medicinal está prestes a ganhar um novo capítulo no Brasil. Após decisão histórica do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconheceu a legalidade do plantio da planta para fins industriais e terapêuticos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apresentou, durante sua 16ª Reunião Pública, os rumos que pretende seguir na construção de uma norma definitiva.
O encontro reforçou o compromisso técnico da Agência em elaborar uma regulação ampla, atualizada e em consonância com os desafios operacionais e científicos que envolvem o uso da planta no país.
Definições jurídicas e técnicas ainda exigem tempo
Desde novembro de 2024, o STJ firmou entendimento de que pessoas jurídicas podem importar sementes, plantar e comercializar produtos derivados do cânhamo industrial — variedade da Cannabis com até 0,3% de tetrahidrocanabinol (THC) — para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos. A decisão, considerada um marco no avanço das terapias canabinoides no Brasil, também estabeleceu que essa categoria da planta não pode ser considerada proibida. No entanto, o caminho até a implementação prática exige ajustes finos em pontos sensíveis da regulamentação.
Por isso, a Advocacia-Geral da União (AGU), em parceria com a própria Anvisa, solicitou ao STJ uma extensão do prazo inicial previsto para a regulamentação, com o argumento de que um texto normativo apressado deixaria lacunas que podem comprometer o desenvolvimento científico e a segurança jurídica do setor.
Segundo o diretor Thiago Campos, relator do processo regulatório, a prorrogação visa permitir que todos os aspectos sejam discutidos com profundidade. A proposta é ampliar a minuta original e incluir temas ainda pendentes, garantindo um avanço técnico que vá além do cumprimento formal da decisão judicial.
Impactos do limite de THC na produção e na ciência
Um dos pontos mais delicados em debate é justamente o percentual de THC permitido nos produtos à base de Cannabis. Embora o cânhamo industrial seja classificado como aquele com até 0,3% de THC, a Anvisa já autorizou medicamentos com teores superiores a esse limite, o que acende o alerta para possíveis entraves à continuidade da pesquisa, à oferta de tratamentos e ao acesso por parte dos pacientes.
O receio é que a fixação rígida desse limite possa comprometer formulações já estabelecidas ou inviabilizar o registro de novos compostos terapêuticos, principalmente em áreas como neurologia e oncologia, onde a concentração do canabinoide pode ser crucial para a eficácia clínica.
Nesse sentido, a Agência busca um ponto de equilíbrio: respeitar o recorte legal definido pelo STJ sem prejudicar o avanço técnico e científico, o que exige uma análise minuciosa de cada produto e suas indicações terapêuticas.
Diálogo com sociedade civil e instituições de pesquisa
Em paralelo à construção do novo marco regulatório, a Anvisa já vem promovendo encontros com diferentes atores da sociedade e do setor produtivo. Um dos mais relevantes ocorreu com a Embrapa, quando foram discutidas diretrizes para pesquisa agrícola com a planta Cannabis sativa e o papel da estatal na formulação de boas práticas de cultivo, especialmente em território nacional.
Outro momento importante aconteceu com associações de pacientes, que trouxeram à pauta demandas reais sobre acesso aos medicamentos, altos custos, entraves jurídicos e a persistente judicialização — fenômeno que se tornou uma constante entre famílias que buscam na Justiça o direito ao uso medicinal da planta.
Esses encontros sinalizam a tentativa da Anvisa de construir uma regulamentação com base em evidências e demandas concretas. Para isso, o plano de trabalho apresentado pela AGU ao STJ envolve também o Ministério da Saúde e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), numa articulação interministerial inédita sobre o tema.
Caminho ainda em construção, mas com avanços promissores
O processo de regulamentação do cultivo de Cannabis medicinal no Brasil está longe de ser simples. Envolve aspectos sanitários, científicos, jurídicos e sociais — todos igualmente relevantes. Entretanto, ao demonstrar abertura ao diálogo e disposição para ampliar os debates técnicos, a Anvisa sinaliza um caminho de responsabilidade, segurança e, sobretudo, esperança para milhares de brasileiros que dependem da planta como ferramenta terapêutica.
A prorrogação solicitada ao STJ, apresentada no final de setembro, tem como objetivo justamente garantir que o texto final da regulamentação esteja à altura das complexidades envolvidas, evitando riscos e lacunas. À medida que o país avança nesse debate, o olhar atento da sociedade sobre cada passo do processo continua sendo essencial para garantir que o acesso à saúde caminhe ao lado da ciência e da legalidade.