A cana-de-açúcar, uma das culturas mais estratégicas do agronegócio brasileiro, acaba de ganhar uma aliada inesperada: a ciência. Uma descoberta recente revelou a existência de uma nova espécie de cigarrinha-da-cana, praga que por décadas foi tratada como idêntica a outras já conhecidas, apesar das diferenças genéticas e morfológicas.
Essa identificação, feita por pesquisadores de diferentes instituições brasileiras, pode representar um divisor de águas no manejo fitossanitário dos canaviais — e promete reduzir prejuízos causados por aplicações ineficazes de inseticidas.
Um inseto, múltiplas identidades: como a descoberta começou
Tudo começou quando o professor Gervásio Silva Carvalho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), recebeu amostras de cigarrinhas coletadas em áreas de cana-de-açúcar nos estados do Sul e Sudeste. Eram populações que não estavam sendo afetadas pelos inseticidas mais comuns, levantando dúvidas sobre sua real identidade. O olhar treinado de Carvalho em taxonomia de insetos detectou que aqueles exemplares apresentavam características distintas das espécies já registradas oficialmente no Brasil.
Enquanto isso, no interior paulista, outro lote de cigarrinhas chegava ao laboratório do professor Diogo Cavalcanti Cabral-de-Mello, da Unesp de Rio Claro. Especialista em citogenética e genômica de insetos, ele percebeu indícios genéticos sutis, porém consistentes, de que talvez estivesse diante de uma nova espécie. Sem saber que Carvalho conduzia uma análise paralela, os caminhos de ambos os pesquisadores só se cruzaram depois — e foi aí que a verdadeira investigação começou.
“Esse gênero de cigarrinha-da-cana tem espécies muito parecidas entre si, que chamamos de crípticas. Após dissecar os insetos, percebemos que alguns tinham a genitália do macho com uma estrutura bifurcada, o que sugeria uma espécie ainda não descrita”, explica a pesquisadora Andressa Paladini, primeira autora do estudo, hoje professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que conduziu o trabalho durante seu pós-doutorado na PUC-RS sob supervisão de Carvalho.
A confirmação genética e morfológica que mudou tudo
Foi a partir da colaboração entre os grupos que nasceu a descrição oficial da nova espécie: Mahanarva diakantha. O nome, de origem grega, significa “dois espinhos”, em referência à característica única da genitália dos machos. Para garantir a validade da descoberta, os cientistas aplicaram três abordagens distintas: análise morfológica detalhada, sequenciamento de DNA mitocondrial e a chamada morfometria geométrica, que compara a forma de estruturas corporais — neste caso, as asas posteriores.
“Isolamos uma sequência do DNA conhecida como COI, que varia entre espécies e é usada como código genético identificador. A diferença que encontramos era pequena, mas real. Sem o apoio da morfologia, seria impossível classificá-la como uma nova espécie”, esclarece Cabral-de-Mello.
Além disso, ao consultar coleções entomológicas, os cientistas identificaram registros da M. diakantha datados de 1961, erroneamente classificados como M. fimbriolata, o que reforça o quão antiga é a presença dessa cigarrinha no território brasileiro — embora até hoje tenha passado despercebida por causa de sua semelhança com espécies próximas.
Impactos para o campo: o que muda na prática
A descoberta não é apenas uma curiosidade científica: ela abre caminho para reformular completamente estratégias de manejo agrícola. Como a Mahanarva diakantha era tratada como se fosse uma de suas “irmãs” próximas, os métodos de controle aplicados até hoje podem não ser os mais eficazes. Isso pode explicar a resistência observada a certos inseticidas e, consequentemente, os danos persistentes nas lavouras.
“Agora que está descrita como uma nova espécie, abre-se uma gama de novas possibilidades”, afirma Paladini. Entre elas, está a reavaliação de estudos passados, já que muitos dados sobre cigarrinhas podem estar misturados com exemplares da nova espécie sem a devida diferenciação.
Além disso, o estudo — publicado no Bulletin of Entomological Research e apoiado pela FAPESP — também destaca a necessidade de ampliar a amostragem nacional, para entender melhor a distribuição geográfica da M. diakantha, suas particularidades biológicas e potenciais interações com o ambiente e os cultivos.
Diversidade invisível e o futuro da pesquisa entomológica
A existência de espécies “crípticas” como a nova cigarrinha-da-cana evidencia o desafio que é lidar com a biodiversidade de insetos no Brasil. Mesmo com ferramentas modernas, a diferenciação de pragas exige atenção multidisciplinar, combinando genética, morfologia e registros históricos.
“Não sabemos exatamente há quanto tempo ocorreu a separação genética entre as espécies, mas as análises sugerem um processo recente de especiação”, comenta Cabral-de-Mello.
O próximo passo será investigar se o ciclo de vida da M. diakantha difere das demais, se seus hospedeiros variam e se apresenta resistência particular a pesticidas. Com base nisso, será possível pensar em manejos mais específicos, sustentáveis e eficazes para proteger os canaviais de norte a sul do país.
Essa descoberta, portanto, vai além da taxonomia: ela representa uma oportunidade estratégica para reduzir perdas na produção agrícola, aumentar a eficiência do controle biológico e, de quebra, estimular o avanço da ciência nacional na área de entomologia aplicada ao agronegócio.



