Resumo
• A pesquisa da Embrapa mostra que irrigar o trigo no Cerrado após 40% da depleção hídrica garante máxima produtividade e reduz em até 50% as emissões de gases de efeito estufa.
• O ponto ideal de umidade evita picos de N₂O causados pelos ciclos de secagem e reumidificação, equilibrando rendimento agrícola e sustentabilidade climática.
• Especialistas explicam que o solo funciona como uma “caixa d’água subterrânea”, exigindo monitoramento preciso para evitar estresse hídrico e desperdícios.
• O estudo revela que, nas condições ideais de irrigação, o solo do Cerrado atua como dreno de metano, absorvendo CH₄ em vez de emitir o gás.
• Conduzido em Planaltina (DF), o experimento reforça o potencial do Cerrado para produzir trigo competitivo e de baixo impacto climático, ampliando práticas agrícolas inteligentes.
A agricultura tropical brasileira avança rapidamente rumo a sistemas produtivos mais eficientes, e a irrigação — uma antiga aliada do Cerrado — passa agora por uma revisão que pode redefinir o futuro do trigo cultivado sob clima quente. Uma pesquisa inédita da Embrapa Cerrados demonstrou que o momento exato de aplicar água no campo é determinante não apenas para o rendimento das lavouras, mas também para o volume de gases de efeito estufa liberados no processo. Ao identificar que o ponto ideal de manejo ocorre quando o solo atinge 40% de depleção hídrica, os pesquisadores revelam uma estratégia capaz de cortar pela metade as emissões sem sacrificar nenhuma tonelada de produtividade.
A descoberta, publicada na revista Sustainability, analisa pela primeira vez o comportamento conjunto de produtividade, dinâmica da água, fluxo de óxido nitroso (N₂O) e metano (CH₄) em áreas de trigo irrigado no Cerrado. O resultado não apenas orienta produtores em busca de maior precisão, mas também sinaliza o papel desse bioma na transição para uma agricultura de baixo carbono.
A zona ideal da água: por que 40% é o ponto de equilíbrio?
Os experimentos conduzidos entre 2022 e 2024 testaram quatro níveis de depleção: 20%, 40%, 60% e 80%. Embora cada faixa representasse uma estratégia real de irrigação, foi na reposição após o uso de 40% da água disponível no solo que o sistema atingiu sua melhor performance agronômica e ambiental. A produtividade média ficou em 6,8 t/ha — patamar altamente competitivo — ao mesmo tempo em que as emissões de N₂O foram as mais baixas observadas.
Para a pesquisadora Alexsandra Oliveira, responsável pelo estudo, essa relação não é casual. Ela explica que o solo funciona como uma grande câmara viva, onde processos microbiológicos respondem imediatamente à umidade. “Manter a umidade intermediária, próxima dos 40%, oferece o melhor equilíbrio entre produtividade e sustentabilidade ambiental”, afirma. “É nessa faixa que observamos o menor Potencial de Aquecimento Global e as emissões mais baixas de óxido nitroso.”
Esse equilíbrio também impede a ocorrência de picos de emissão que aparecem quando o solo sofre ciclos prolongados de secagem seguidos de reumidificação intensa — situação comum quando a irrigação é atrasada para níveis de 60% ou 80%. Nessas condições, a atividade microbiana responsável pela produção de N₂O dispara, elevando drasticamente o impacto climático.
Por que irrigar tarde aumenta emissões?
A dinâmica é semelhante ao comportamento de uma esponja. Quando o solo passa demasiado tempo seco, os micro-organismos entram em repouso; já quando uma grande lâmina de água é aplicada de uma só vez, eles retomam plena atividade e aceleram reações que liberam N₂O. O resultado é um pico elevado de emissões — justamente o que ocorre nas estratégias de irrigação tardia.
O pesquisador Jorge Antonini recorre a uma imagem simples para explicar o conceito. “O solo deve ser monitorado como uma caixa d’água subterrânea”, diz. “Quando deixamos essa caixa esvaziar demais, as plantas sofrem e as emissões aumentam. Quando enchemos em excesso, desperdiçamos água e também estimulamos processos indesejáveis.”
Assim, a irrigação não deve ser pensada apenas como reposição de água para o trigo, mas como um ajuste fino no funcionamento biológico do solo — e isso muda a forma como o Cerrado pode produzir trigo com baixa pegada ambiental.
Alta produtividade com menor impacto climático
Ao respeitar o limite dos 40%, o trigo irrigado no Cerrado demonstra não apenas estabilidade produtiva, mas uso mais racional de insumos e energia. O manejo hídrico preciso evita desperdícios, reduz correções nitrogenadas e diminui os processos que aceleram o aquecimento global.
Segundo Antonini, o recado para o setor é direto. “Não é irrigar mais ou menos, é irrigar com precisão. O Cerrado pode produzir trigo competitivo e de baixo impacto climático”, resume o pesquisador, destacando que os resultados podem apoiar políticas públicas e sistemas de rastreabilidade ligados à agricultura de baixo carbono.
Metano: o gás que virou aliado no Cerrado
Um dos achados mais surpreendentes da pesquisa aparece no comportamento do metano. Em vez de emitir CH₄ para a atmosfera, o solo do Cerrado atuou como um dreno natural, absorvendo o gás quando o manejo hídrico se manteve dentro do ponto ideal — um fenômeno raro em sistemas irrigados.
A explicação está na natureza dos solos tropicais, marcados por boa drenagem, elevada aeração e ausência de encharcamento. Nessas condições, predominam micro-organismos capazes de consumir metano, fazendo com que o balanço final seja negativo, ou seja: o sistema retira mais CH₄ do que libera. O efeito reforça a capacidade do Cerrado de contribuir para práticas agrícolas alinhadas às metas de redução das emissões.
Como o estudo foi conduzido
A pesquisa ocorreu em Planaltina (DF), em áreas manejadas sob plantio direto, com sucessão soja–trigo — um modelo amplamente adotado na região. A irrigação foi monitorada com sondas instaladas a 70 cm de profundidade, enquanto as emissões de N₂O e CH₄ foram medidas por meio de câmaras estáticas, metodologia recomendada pelo IPCC.
As cultivares utilizadas, BRS 4782 RR (soja) e BRS 264 (trigo), são conhecidas pela boa adaptação ao Cerrado e pela estabilidade em ambientes irrigados.
Implicações para a agricultura tropical de baixo carbono
Com mais de 30 mil hectares de trigo irrigado já implantados no Cerrado, o Brasil encontra uma oportunidade estratégica para reduzir importações e fortalecer a produtividade local. A descoberta da Embrapa oferece um novo eixo de manejo, alinhado tanto ao desempenho econômico quanto às exigências ambientais atuais.
“Ajustar o momento da irrigação otimiza o uso da água e do nitrogênio, garantindo rendimento elevado e menor impacto ambiental”, reforça Alexsandra Oliveira, destacando que os resultados podem orientar práticas em outras culturas tropicais. A equipe já estuda sistemas aplicados ao milho, ao café e à soja, ampliando o alcance das soluções climáticas inteligentes no campo.



