Resumo
• Pesquisadores confirmam que a linhagem Bd-Brazil, causa da quitridiomicose, surgiu no Brasil e se espalhou décadas depois para outros continentes.
• Registros históricos em museus mostram o fungo presente no país desde 1916, muito antes da introdução da rã-touro e do comércio internacional.
• A rã-touro criada em ranários brasileiros atuou como vetor silencioso, levando o fungo para países como Estados Unidos e Coreia do Sul.
• A Bd-Brazil é menos virulenta que outras linhagens, mas sua dispersão global afetou espécies sem defesas evolutivas, causando declínios severos.
• A descoberta reforça a urgência de controles sanitários internacionais para impedir novas disseminações e proteger populações de anfíbios no mundo.
A crise global dos anfíbios, marcada por desaparecimentos súbitos de sapos, rãs e pererecas ao redor do planeta, tem raízes muito mais profundas do que a ciência imaginava. Enquanto pesquisadores buscavam explicações para o declínio silencioso de espécies inteiras, a pista decisiva estava guardada em coleções brasileiras desde o início do século 20. Aliás, nos frascos esquecidos de museus, um fungo microscópico e altamente adaptável deixava rastros de uma história que agora começa a ser recontada.
O Batrachochytrium dendrobatidis — conhecido simplesmente como Bd — é o agente causador da quitridiomicose, uma doença capaz de desregular a função da pele dos anfíbios, levando-os à morte. Entretanto, não é qualquer ramificação desse fungo que está no centro da discussão, mas uma linhagem específica: a Bd-Brazil. Essa variante genética, presente no país há mais de um século, foi finalmente reconhecida como originária do território brasileiro, abrindo novos caminhos para compreender como a doença se espalhou globalmente.
O estudo, publicado na Biological Conservation, demonstra que a Bd-Brazil circulava no Brasil desde, pelo menos, 1916 — muito antes de a crise dos anfíbios atingir escala mundial. Assim, a descoberta confirma uma suspeita antiga e desmonta a hipótese de que o fungo teria surgido na Ásia, como sugerido por pesquisas anteriores.
A disputa científica pela origem
A confirmação brasileira não veio sem resistência. Em 2012, a linhagem foi descrita pela primeira vez e recebeu o nome Bd-Brazil, pela predominância em espécies nativas do país. Entretanto, seis anos depois, um artigo publicado na revista Science propôs que a linhagem poderia ter origem na Península Coreana, rebatizando-a como Bd-Asia-2/Bd-Brazil. A sugestão colocou em dúvida a narrativa construída até então, ampliando a necessidade de uma investigação mais completa.
Apesar da controvérsia, pesquisadores da Unicamp persistiram. Eles reuniram análises genéticas, evidências históricas, dados ecológicos e registros zoológicos que, quando conectados, apontam para a mesma direção: o fungo emergiu no Brasil antes de se espalhar para outros continentes.
O trabalho de bastidores para desvendar a história
A reconstrução dessa trajetória exigiu uma combinação rara de ciência, paciência e acesso a coleções centenárias. Espécimes preservados desde 1815 foram reexaminados utilizando técnicas modernas que detectam vestígios do patógeno em tecidos antigos. Assim, 2.280 exemplares de sapos e rãs, coletados em museus do mundo inteiro, passaram por triagem. Destes, 40 testaram positivo para o Bd.
O registro mais antigo veio de um sapo coletado nos Pireneus franceses em 1915, mas foi o segundo caso — de um exemplar brasileiro, colhido em 1964 — que consolidou a importância do país na história evolutiva da doença. Entretanto, o dado decisivo estava em outro achado: sinais da Bd-Brazil foram identificados em materiais datados de 1916, comprovando sua circulação local muito antes da introdução de anfíbios exóticos ou da expansão internacional do comércio.
A rã-touro e sua participação inesperada
A rã-touro americana (Aquarana catesbeiana) é peça-chave na expansão global do fungo. Introduzida no Brasil em 1935 e novamente na década de 1970, ela se tornou protagonista do mercado de carne de rã. Porém, enquanto se adaptava com facilidade aos ranários brasileiros, carregava em sua pele a Bd-Brazil — sem adoecer.
A resistência da espécie fez dela um vetor silencioso. Quando o Brasil passou a exportá-la, o fungo seguiu viagem, alcançando Estados Unidos, Coreia do Sul e outros países envolvidos na cadeia comercial. O rastreamento de mais de 3.600 rotas internacionais de exportação confirmou que a linhagem apareceu nesses países somente após sua presença comprovada no Brasil.
Por que isso muda tudo
A Bd-Brazil, embora letal em determinadas condições, apresenta virulência moderada quando comparada a outras linhagens, como a Bd-GPL, associada a colapsos populacionais em vários continentes. Contudo, sua presença no comércio internacional favoreceu o cruzamento entre linhagens, o que pode ter acelerado a evolução de variantes mais agressivas.
No Brasil, o fungo convive com espécies nativas há mais de um século. Aliás, muitas delas parecem ter desenvolvido tolerância fisiológica, convivendo com o patógeno sem declínios dramáticos. Porém, ao ser introduzido em novos ecossistemas, o Bd encontra anfíbios sem defesas evolutivas, desencadeando extinções locais e desequilíbrios ecológicos.
O alerta global
A pesquisa reforça a urgência de regulamentações internacionais rigorosas para o transporte de animais vivos. Protocolos de quarentena, triagem compulsória de patógenos e medidas sanitárias padronizadas são apontados como essenciais para evitar novas disseminações. Afinal, a história da Bd-Brazil mostra como um microrganismo pode atravessar fronteiras e transformar ecossistemas inteiros.
Além disso, a descoberta suscita uma reflexão sobre o papel das atividades humanas na dispersão de doenças emergentes. A cada navio, avião ou carga de animais vivos, microrganismos invisíveis podem estar cruzando continentes sem qualquer controle.
Uma peça-chave para compreender a crise dos anfíbios
Ao desvendar a genealogia da Bd-Brazil, pesquisadores avançam na compreensão da quitridiomicose e abrem espaço para novas estratégias de conservação. A ciência agora tem um início de linha do tempo mais claro, reforçando a importância de estudos retrospectivos em coleções zoológicas e da integração entre genética, ecologia e história natural.
O fungo que hoje ameaça anfíbios em todos os continentes nasceu aqui, se espalhou a partir do Brasil e se tornou um dos maiores desafios contemporâneos para a conservação da biodiversidade. Assim, compreender sua origem não é apenas resolver um enigma — é um passo essencial para proteger as espécies que ainda resistem.



