Era final de tarde quando Rosicleia Ralla dirigia tranquilamente por uma estrada de terra em Nova Maringá, no Mato Grosso. Em meio à paisagem rural, algo branco se moveu entre os arbustos — não era um cão, nem uma ave. Era uma figura esguia, com pelagem inteiramente clara e olhos translúcidos. Ela registrou a cena em vídeo, sem imaginar que acabava de flagrar um marco na ciência: o primeiro caso documentado de albinismo total em uma raposa-caranguejeira (Cerdocyon thous) em todo o mundo.
A gravação, enviada ao sobrinho Maico Sávio e posteriormente compartilhada com pesquisadores da área, não demorou a repercutir entre biólogos e geneticistas. Afinal, não se trata apenas de um indivíduo exótico — mas de uma ocorrência extremamente rara, com implicações diretas sobre conservação, ecologia e genética da fauna sul-americana.
O que diferencia o albinismo total na espécie
Embora casos de leucismo (redução parcial da pigmentação) sejam eventualmente relatados em animais silvestres, o albinismo total é outro fenômeno. A diferença está na ausência completa de melanina, que afeta não apenas a pelagem, mas também a pele e os olhos. Segundo o biólogo e doutor em genética evolutiva André Bittencourt, esse nível de hipopigmentação compromete profundamente a interação do animal com o ambiente.
“O albinismo em carnívoros de vida livre é raríssimo porque representa um alto custo biológico. A falta de pigmento reduz a camuflagem, interfere na visão e torna o indivíduo mais vulnerável a predadores e à luz solar intensa”, explica o especialista. “É um caso que desperta preocupação, mas também oferece uma oportunidade científica única.”
A raposa-caranguejeira, frequentemente chamada de cachorro-do-mato, possui uma ampla distribuição pelo território brasileiro. Seu padrão típico de coloração varia entre tons de marrom, cinza e negro. O indivíduo albino, portanto, rompe esse padrão completamente, tornando-se uma exceção dentro de uma espécie com alta adaptabilidade.
Genética, isolamento e os riscos invisíveis
A ocorrência de albinismo em fauna silvestre está geralmente associada a dois fatores principais: mutações genéticas espontâneas e processos de redução da diversidade genética, provocados por isolamento geográfico ou endogamia. É o que observa a ecóloga Fabiana Moreira, pesquisadora do Laboratório de Ecologia Genética Aplicada da UFMT.
“Quando populações de animais ficam restritas a fragmentos isolados de habitat, a chance de cruzamento entre indivíduos geneticamente semelhantes aumenta. Com isso, mutações raras podem se manifestar com mais frequência, como o albinismo”, aponta a especialista. “Esse caso específico reforça o alerta para a conservação de corredores ecológicos que garantam o fluxo genético entre populações silvestres.”
A descoberta da raposa albina, nesse sentido, não se limita ao ineditismo da imagem. Ela revela uma silenciosa fragilidade nos bastidores da biodiversidade. A degradação de habitats, especialmente no Cerrado e na Mata Atlântica, vem diminuindo a conectividade entre os territórios, o que pode favorecer anomalias genéticas como essa — embora ainda pouco visíveis ao olhar comum.
Impactos diretos na vida do animal
Animais com albinismo enfrentam múltiplos desafios no ambiente natural. A visão é uma das primeiras funções comprometidas, pois a melanina também desempenha papel na formação da retina. Além disso, a ausência de coloração camufladora dificulta a caça e a fuga de predadores.
No caso específico da raposa-caranguejeira, que é um animal de hábitos crepusculares e noturnos, a hipersensibilidade à luz solar pode afetar significativamente seus padrões de atividade. Com isso, as chances de sobrevivência diminuem, e a capacidade de reprodução também pode ser afetada por alterações no comportamento social ou rejeição por outros membros do grupo.