Em um dos cantos mais intocados do Cerrado brasileiro, três filhotes de onça-pintada vieram ao mundo sob as copas das veredas, surpreendendo pesquisadores e reacendendo a esperança para a preservação de uma das maiores joias da fauna nacional. O nascimento das trigêmeas foi registrado pelas câmeras instaladas no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais, e representa um marco inédito para o monitoramento da espécie na região.
A protagonista dessa história é uma fêmea que os pesquisadores acompanham desde 2019, quando ainda era apenas uma jovem felina circulando pela área da Pousada Trijunção, localizada entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Com o tempo, ela se deslocou para o lado mineiro do Parque, onde passou a ser monitorada por armadilhas fotográficas estrategicamente posicionadas para captar o cotidiano silencioso e noturno desses predadores solitários. E foi assim, entre imagens noturnas e dados meticulosos, que a equipe do Onçafari teve a confirmação do nascimento das três irmãs.
A ciência encontra o Cerrado
Embora o nascimento de filhotes de onça-pintada não seja incomum, a ocorrência de trigêmeas é extremamente rara, especialmente em áreas de Cerrado. Para os pesquisadores do projeto “Onças – Guardiãs do Grande Sertão Veredas”, o achado reforça a importância da conectividade entre os fragmentos de mata e do investimento contínuo em monitoramento de longo prazo. A partir de 2024, o número de câmeras no Parque aumentou significativamente, com 64 novas armadilhas fotográficas viabilizadas por meio da Plataforma Semente, uma iniciativa que une o Ministério Público de Minas Gerais ao CeMAIS.
Ao todo, já foram capturados mais de 21 mil registros de onças na região, revelando uma população que pode variar entre 44 e 55 indivíduos — número expressivo para um bioma historicamente pressionado por queimadas, expansão agropecuária e fragmentação. Cerca de 40% dessas onças são melânicas, com pelagem escura, popularmente conhecidas como “panteras-negras”. Esses dados têm sido fundamentais para mapear os chamados corredores ecológicos, áreas de passagem seguras entre as Unidades de Conservação que garantem o deslocamento da fauna e mantêm a diversidade genética das populações.
Grande Sertão, grandes histórias
Criado em 1989 e ampliado em 2004, o Parque Nacional Grande Sertão Veredas ocupa mais de 230 mil hectares entre Minas Gerais e Bahia. Seu nome homenageia a célebre obra de João Guimarães Rosa e não poderia ser mais apropriado: entre chapadas, veredas, campos rupestres e matas ciliares, a paisagem se molda com a mesma poesia que o autor imprimiu em suas páginas.
O Parque é hoje um dos bastiões da preservação do Cerrado, abrigando não apenas a onça-pintada, mas também tamanduás-bandeira, araras, lobos-guará e diversas espécies endêmicas. Sua importância vai além da conservação da fauna: ele protege nascentes que alimentam as bacias do São Francisco e do Tocantins, cumpre papel essencial na regulação do clima e ainda se abre como cenário ideal para a educação ambiental e o turismo sustentável.
Tecnologia a serviço da vida selvagem
O registro das trigêmeas foi possível graças às câmeras trap, ou armadilhas fotográficas, que se tornaram aliadas indispensáveis da ciência da conservação. Instaladas em locais estratégicos e ativadas por sensores de movimento, elas captam imagens e vídeos sem interferir no comportamento dos animais. Com esses dados, é possível conhecer melhor os hábitos das onças, monitorar nascimentos, identificar deslocamentos e até mesmo obter amostras genéticas a partir de pegadas ou fezes encontradas próximas aos registros.
Esse tipo de acompanhamento também permite compreender como a presença humana impacta o ambiente e como mitigar os conflitos entre a fauna e as comunidades vizinhas. Em tempos de emergência climática e perda acelerada da biodiversidade, iniciativas como essa se mostram não apenas importantes, mas urgentes.
A força do Onçafari
À frente desse trabalho, está o Onçafari, uma ONG criada em 2011 com o objetivo de promover a conservação da biodiversidade brasileira por meio do ecoturismo, da pesquisa científica e do engajamento comunitário. Com atuação em quatro biomas — Cerrado, Pantanal, Amazônia e Mata Atlântica —, a organização reúne esforços para proteger espécies ameaçadas e recuperar áreas naturais degradadas.
Em 2024, o Onçafari foi reconhecido como uma das 100 melhores ONGs do país, resultado de sua atuação consistente, transparente e transformadora. O nascimento das trigêmeas no Parque Nacional Grande Sertão Veredas é mais um capítulo dessa trajetória, que alia paixão pela natureza com estratégias sólidas de conservação.
E é também uma lembrança viva — ou melhor, três — de que a vida selvagem ainda resiste, silenciosa e majestosa, nas veredas do Brasil profundo. Aliás, talvez Guimarães Rosa tivesse razão: o sertão é onde se misturam os caminhos do homem, da onça e da esperança.