Resumo
• A Anvisa concedeu autorização excepcional para a Embrapa pesquisar o cultivo de cannabis sativa, sob rígido controle sanitário e sem alterar as regras atuais de mercado.
• Antes dos estudos começarem, a Embrapa passará por inspeção da Anvisa e deverá cumprir exigências de segurança, rastreabilidade do material vegetal e protocolos de controle.
• A autorização restringe totalmente a comercialização: os produtos não poderão ser vendidos e o envio de material será apenas para pesquisa, com amostras não aptas à propagação.
• As pesquisas se concentram em três frentes: conservação de germoplasma, bases científicas para cannabis medicinal e pré-melhoramento de cânhamo para fibras e sementes.
• A decisão aproxima agricultura e saúde pública, fortalece a bioeconomia e permite ao Brasil produzir conhecimento próprio, guiando futuras políticas com base em evidências.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu um passo importante ao aprovar, em decisão tomada em 19 de novembro, uma autorização excepcional para que a Embrapa desenvolva pesquisas com o cultivo de cannabis sativa. Trata-se de uma permissão específica, voltada exclusivamente à geração de conhecimento científico, que não altera as regras de comercialização da planta ou de seus derivados no país.
O pedido havia sido encaminhado pela Embrapa em julho do ano anterior e passou por análise técnica detalhada. Antes mesmo de iniciar os experimentos em campo ou em ambiente controlado, a instituição terá de se submeter a uma inspeção presencial da Anvisa. Além disso, deverá comprovar o cumprimento de uma série de requisitos relacionados à segurança física, ao controle de acesso e ao rastreio de todo o material vegetal utilizado.
A autorização não é definitiva nem irrestrita. Ela será acompanhada de perto pela agência reguladora, que poderá solicitar ajustes, aperfeiçoar protocolos e até rever condições, caso identifique riscos à segurança sanitária ou desvios em relação ao que foi aprovado.
Sem comercialização: foco é apenas pesquisa
Apesar de o tema mobilizar debates econômicos e sociais, a Anvisa fez questão de reforçar que nenhum produto derivado das pesquisas da Embrapa com cannabis poderá ser colocado à venda. O objetivo é, exclusivamente, produzir dados científicos e tecnológicos que apoiem futuras decisões de políticas públicas e eventuais regulações.
Nesse cenário, a Embrapa poderá encaminhar parte do material vegetal para outras instituições de pesquisa, desde que se trate de amostras não aptas à propagação, ou seja, que não possam ser usadas para multiplicar plantas. Além disso, essas instituições receptoras também precisam estar devidamente autorizadas a trabalhar com cannabis, mantendo o mesmo padrão de controle e segurança.
O relator do processo que embasou a decisão, Thiago Lopes Cardoso Campos, enfatizou que a autorização está alinhada ao papel da agência de fomentar inovação sem abrir mão da proteção à saúde. Para ele, é a ciência que deve orientar o país neste debate. Em nota, destacou que a medida permite ao Brasil construir conhecimento próprio, fortalecer sua autonomia tecnológica e responder, com base em evidências, às demandas de saúde pública e desenvolvimento nacional.
Três frentes de pesquisa com a cannabis
A autorização concedida à Embrapa não é genérica. Ela delimita três grandes eixos de estudo que poderão ser explorados pela instituição ao longo do projeto, articulando agricultura, saúde e uso industrial.
O primeiro eixo envolve a conservação e caracterização de germoplasma, etapa fundamental quando se fala em qualquer espécie cultivada. Nesse campo, a Embrapa poderá estudar diferentes acessos de cannabis, identificar características agronômicas relevantes, mapear variabilidade genética e entender melhor o potencial de adaptação das plantas a diferentes ambientes de cultivo.
O segundo eixo concentra-se na produção de bases científicas e tecnológicas para o uso medicinal da cannabis. Embora a Embrapa não vá produzir medicamentos, seus estudos podem ajudar a definir parâmetros agronômicos para obtenção de matéria-prima de qualidade, mais padronizada e rastreável, algo essencial quando se fala em insumos destinados à área da saúde.
Por fim, o terceiro eixo se volta ao pré-melhoramento de cânhamo para fibras e sementes, abrindo espaço para avaliar o potencial da planta em usos industriais, como produção de fibras têxteis, materiais compostos e sementes com aplicação em alimentação ou em cadeias produtivas específicas. Nessa frente, a pesquisa busca organizar uma base de conhecimento que, no futuro, pode orientar cadeias produtivas mais sustentáveis e diversificadas.
Interesse global e agenda de inovação
Na justificativa apresentada à Anvisa, a Embrapa ressaltou o crescimento do interesse mundial pela cannabis, que passou a ser vista não apenas sob o prisma medicinal, mas também como uma cultura com relevância econômica, social e ambiental. Países que avançaram na regulação da planta vêm estruturando, em paralelo, agendas de pesquisa robustas, justamente para evitar que a expansão do uso ocorra sem embasamento científico sólido.
Ao entrar nesse campo, a Embrapa busca posicionar o Brasil de maneira mais estratégica. A instituição pretende reunir dados sobre o desempenho da cannabis em diferentes condições de clima e solo, avaliar sistemas de cultivo possíveis e compreender como alinhar essa cultura a princípios de agricultura sustentável. Assim, em vez de simplesmente importar modelos de outros países, o Brasil passa a construir conhecimento próprio, adaptado às suas realidades produtivas.
A pesquisadora Beatriz Emygdio, da Embrapa Clima Temperado (RS), avaliou que a decisão da Anvisa é, ao mesmo tempo, um reconhecimento da qualidade técnica das propostas apresentadas pela empresa pública e um voto de confiança na capacidade do sistema de pesquisa nacional de lidar com temas complexos. Para ela, trata-se de uma oportunidade de produzir ciência com impacto direto em cadeias emergentes.
Conexão entre agricultura e saúde pública
Dentro da Embrapa, a autorização foi recebida como uma ponte importante entre a agenda agrícola e a saúde pública. Clenio Pillon, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa, destacou que a decisão da Anvisa se soma a um movimento mais amplo de estímulo à pesquisa com canabinoides no país. Ele lembrou que, recentemente, a Finep aprovou mais de R$ 13 milhões em recursos para projetos da Embrapa e de instituições parceiras voltados ao estudo do canabidiol (CBD).
Essa combinação de financiamento e autorização regulatória cria um ambiente mais favorável para que as equipes técnicas avancem em experimentos, análises e protocolos. Além disso, permite que o debate sobre cannabis no Brasil seja cada vez mais sustentado por dados, e não apenas por opiniões ou percepções isoladas.
Ao comentar a decisão, Pillon ressaltou que o objetivo final é construir uma agenda que conecte o produtor rural, o sistema de ciência e tecnologia e as demandas da população por soluções em saúde. A pesquisa, nesse contexto, pode contribuir tanto para a definição de variedades mais adequadas a diferentes usos quanto para a elaboração de parâmetros de qualidade de matéria-prima, algo central para eventuais políticas públicas na área.
Ciência, bioeconomia e futuro da cannabis no país
Além da interface direta com a saúde, a agenda de estudos da Embrapa com cannabis também dialoga com a bioeconomia, campo que busca agregar valor a produtos de origem biológica e estruturar cadeias mais limpas e inovadoras. A pesquisadora Daniela Bittencourt, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF), classificou a aprovação da Anvisa como um marco para a ciência brasileira, justamente por abrir espaço para uma abordagem séria, responsável e baseada em evidências.
Ela ressalta que o conhecimento gerado pode apontar caminhos para soluções sustentáveis em agricultura, saúde e desenvolvimento de novos produtos, desde que sempre sob a guarda de uma regulação rígida e transparente. Nesse sentido, a autorização não é apenas um sinal verde para experimentos, mas também um convite para que o país discuta o tema com mais maturidade e menos preconceitos, ancorado em informações técnicas.
Entretanto, a própria moldura da autorização deixa claro que esse avanço científico não significa flexibilização imediata das regras de mercado. A cannabis permanece, no Brasil, em um ambiente regulatório restrito, e qualquer mudança nesse cenário dependerá de decisões futuras dos órgãos competentes, à luz dos resultados das pesquisas e do debate na sociedade.



