A economia popular e solidária, ao contrário do que muitos pensam, vai muito além da geração de renda e do enfrentamento do desemprego. Ancorada nos princípios da autogestão, cooperação e sustentabilidade, essa forma de organização produtiva tem se espalhado por diferentes regiões do Brasil, revelando sua capacidade de transformar resíduos em oportunidade, inclusão e cuidado com o planeta.
Em Nova Mamoré, cidade de Rondônia que faz fronteira com a Bolívia, esse modelo ganha forma na atuação dos catadores que recolhem resíduos em áreas urbanas, rios e até mesmo na floresta. Um dos protagonistas dessa realidade é Elvis Ricardo Bezerra, integrante de uma associação local composta por 16 pessoas. Segundo ele, a cada mês, cerca de cinco toneladas de materiais recicláveis são retiradas do meio ambiente, devolvendo vida a locais antes tomados pelo descarte irregular.
O impacto da ação, porém, vai além dos números. Elvis destaca que parte do esforço está em materiais que sequer têm valor comercial, como as garrafas de vidro. “Mesmo sem retorno financeiro, continuo recolhendo as garrafas. Em apenas uma semana, retirei 500 quilos de vidro do meio ambiente”, afirma, mostrando como a consciência ambiental pode prevalecer sobre a lógica do lucro.
Oficinas sustentáveis: reciclagem como arte e fonte de autonomia para mulheres
No Sul do país, em Florianópolis (SC), o cenário é outro, mas o espírito da transformação é o mesmo. Por meio da Associação União Norte, mulheres em situação de vulnerabilidade social participam de oficinas de artesanato com resíduos sólidos. A proposta une capacitação, geração de renda e consciência ambiental. Entre os materiais utilizados estão as bitucas de cigarro, que, após passarem por um processo de descontaminação realizado por uma empresa parceira, são transformadas em uma massa moldável, semelhante ao papel machê.
A massa reciclada dá origem a diversos objetos: chaveiros, biojoias, marca-páginas, esculturas e peças utilitárias que ganham espaço nas prateleiras do Mercado Público da capital catarinense. Para Fernanda da Cruz Martins, representante da União Norte, essa transformação é essencial. “Duas bitucas equivalem a dois litros de esgoto no meio ambiente. É um resíduo altamente poluente, com muitas toxinas que prejudicam a saúde e o ecossistema. Por isso, é necessário ter um olhar sustentável para esse processo”, ressalta.
A iniciativa também busca ampliar os horizontes do reaproveitamento, testando novas possibilidades. Materiais como cascas de ovo, borra de café e serragem de madeira estão sendo avaliados para futuros usos criativos. Mais recentemente, o scoby da kombucha — uma massa gelatinosa composta por microrganismos — passou a ser explorado pelas artesãs. Normalmente descartado, ele se revelou resistente e versátil, oferecendo novas possibilidades na produção artesanal.
Fernanda explica que a atuação da associação segue os pilares da economia solidária. “Estamos colaborando com o meio ambiente, com a sociedade e com mulheres em situação de vulnerabilidade”, conclui, reafirmando a potência social que nasce quando o resíduo encontra mãos criativas.
Leis, conferências e políticas públicas fortalecem o movimento solidário no país
Nos últimos anos, o avanço da economia popular e solidária no Brasil também passou a contar com o respaldo de políticas públicas em escala nacional. Em dezembro de 2024, o presidente Lula sancionou a Lei nº 15.068/2024 — batizada de Lei Paul Singer — que oficializa a Política Nacional de Economia Popular e Solidária. A legislação estabelece diretrizes para fomentar empreendimentos coletivos, garantir acesso a crédito, oferecer capacitação e promover a inclusão produtiva de grupos tradicionalmente marginalizados.
Com o objetivo de formar multiplicadores em todo o território nacional, o Programa de Formação Paul Singer foi criado pela Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (Senaes), do Ministério do Trabalho e Emprego. Atualmente, conta com 500 agentes dedicados a mapear e incentivar iniciativas que já atuam com base nos princípios da autogestão e da sustentabilidade.
Outro marco importante ocorreu em agosto de 2025, com a realização da 4ª Conferência Nacional de Economia Popular e Solidária. O evento reuniu representantes dos 27 estados brasileiros, promovendo debates, compartilhamento de experiências e definição de diretrizes para o 2º Plano Nacional do setor.
Além disso, foi reativado o Cadastro Nacional de Empreendimentos Solidários (Cadsol), que reconhece oficialmente essas iniciativas, permitindo que acessem políticas públicas específicas e ampliem suas redes de apoio e financiamento.