A tentativa de definir quem pode — e quem não pode — usar a palavra “leite” nas embalagens de alimentos voltou à pauta do Congresso Nacional. Um projeto de lei que tramita desde 2018 reacendeu a disputa entre representantes do setor lácteo e da indústria de alimentos vegetais. No centro do embate está a proposta de proibir o uso da denominação “leite” em qualquer produto que não tenha origem animal, como bebidas à base de soja, aveia ou amêndoas.
Durante audiência pública realizada na Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados, os representantes da cadeia leiteira argumentaram que a nomenclatura compartilhada pode induzir o consumidor ao erro e comprometer a concorrência leal. Para eles, a palavra “leite” está diretamente associada ao produto de origem animal e seu uso por produtos vegetais seria uma espécie de “carona comercial” injusta.
Concorrência desleal ou mercado em expansão?
A principal crítica do setor agropecuário diz respeito à possibilidade de confusão entre produtos nutricionalmente distintos. Embora o consumidor moderno esteja cada vez mais informado, o setor leiteiro defende que as embalagens devem refletir com precisão a origem e composição do alimento. Para esses representantes, a regulamentação proposta é uma forma de proteger o consumidor e garantir equidade entre os mercados.
De acordo com a atual legislação brasileira, o leite é definido como “produto oriundo da ordenha completa, ininterrupta e em condições de higiene, de vacas sadias e bem alimentadas”. No entanto, não há diretrizes claras sobre os produtos vegetais com aparência e função similar ao leite tradicional. Essa ausência de normatização tem gerado lacunas e disputas interpretativas, o que reforça a defesa por uma legislação mais específica.
Indústria plant based rebate e defende inclusão
Por outro lado, representantes da indústria de alimentos plant based argumentam que a rotulagem já passou por grandes avanços e que a maioria das marcas utiliza termos claros, como “bebida vegetal”, seguidos do ingrediente principal, como “à base de aveia” ou “de soja”. Para o setor, não há mais indução ao erro por parte das empresas — pelo contrário, o uso de palavras familiares como “leite” facilita a identificação do produto e sua funcionalidade no cotidiano.
Entidades como a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) reforçaram ainda que o consumo desses produtos vai além de uma escolha de estilo de vida. Em muitos casos, trata-se de uma necessidade de saúde, como no caso de pessoas com alergia à proteína do leite ou intolerância à lactose. A proposta de proibir o uso do termo “leite” em bebidas vegetais, portanto, é vista por esse grupo como uma barreira de acesso e um retrocesso na inclusão alimentar.
Norma em aberto e debate sobre liberdade comercial
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela fiscalização de alimentos no país, também participou da audiência e se mostrou favorável à regulamentação — mas com ressalvas. Segundo o órgão, a proibição total pode ser excessiva e causar confusão em casos já consolidados, como “leite de coco”, “leite de castanha” ou “leite de arroz”, usados há décadas no mercado brasileiro e na tradição culinária nacional.
Uma alternativa levantada pela Anvisa foi permitir o uso do termo “leite” desde que acompanhado por descrições claras da origem vegetal, com o mesmo destaque visual na embalagem. A proposta visa preservar a clareza para o consumidor sem restringir indevidamente o setor produtivo. Também foi sugerida a proibição de imagens que remetam ao leite animal, como jatos brancos em copos de vidro ou representações gráficas de ordenha, que poderiam induzir a uma equivalência equivocada.
Sem data para votação, mas com pressão crescente
O projeto de lei 10.556/2018, que deu origem à discussão, ainda não tem data marcada para votação. O relator da matéria, deputado federal Heitor Schuch (PSB-RS), afirmou que pretende apresentar seu parecer final ainda neste mês. Enquanto isso, os dois lados da disputa seguem mobilizados: de um lado, o setor leiteiro busca preservar seu mercado diante do crescimento dos alimentos plant based; de outro, a indústria alternativa defende o direito à coexistência, desde que respeitadas regras claras de transparência e informação.