Quando se pensa em queimadas, a imagem que costuma vir à mente é de devastação. Contudo, no Cerrado brasileiro, o fogo ganha uma nova perspectiva: ele é parte vital da renovação e da exuberância da vegetação nativa. A diversidade florística que brota nos campos naturais do bioma está profundamente conectada ao calor intenso e ao ciclo periódico das queimadas. Ao contrário do senso comum, são esses fatores – e não a composição do solo – os maiores responsáveis por moldar a estrutura e a vitalidade da flora cerratense.
Pesquisadores da Unicamp, em parceria com o Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo, mapearam 14 áreas de Cerrado distribuídas entre cinco estados brasileiros. A investigação mergulhou nas características botânicas desses espaços, observando a composição vegetal, a estrutura da vegetação, os padrões climáticos e o histórico de incêndios ao longo de mais de três décadas. O resultado surpreende: as regiões que registraram maior frequência de queimadas apresentaram também maior variedade de espécies vegetais.
Esse achado coloca em xeque antigas interpretações que centralizavam o papel do solo na biodiversidade do bioma. Em vez disso, o calor intenso e o fogo regular parecem funcionar como verdadeiros catalisadores ecológicos, criando condições mais favoráveis ao surgimento e à sobrevivência de espécies adaptadas à seca, menos competitivas em solos excessivamente úmidos ou sombreados. As altas temperaturas, aliadas à escassez hídrica em determinadas épocas do ano, limitam o domínio de espécies mais agressivas, permitindo que a vegetação mais típica e resiliente do Cerrado floresça.
Além disso, a ação do fogo não é sinônimo de destruição indiscriminada, como ocorre nos incêndios acidentais ou criminosos. As chamadas queimadas controladas seguem diretrizes rigorosas, respeitando condições específicas de temperatura, umidade e direção do vento. Executadas por equipes especializadas, essas práticas cumprem um papel estratégico na manutenção ecológica dos campos naturais, ao remover o excesso de biomassa, reduzir a competição por luz e nutrientes, e abrir espaço para a regeneração de plantas endêmicas que dependem de ambientes mais abertos.
O fogo, nesse contexto, atua como um agente de equilíbrio, impedindo o adensamento excessivo da vegetação – fator que tem sido um dos principais responsáveis pela redução da diversidade nas áreas campestres. O que se observa, inclusive, é que quando essas queimadas deixam de ocorrer, o bioma sofre. O crescimento desordenado de árvores e arbustos altera drasticamente a paisagem, reduz o espaço para gramíneas e espécies rasteiras, e empobrece a dinâmica natural do ecossistema.
Ainda não se sabe exatamente qual seria a frequência ideal de queimadas para garantir o chamado “equilíbrio saudável” do Cerrado. A regeneração pós-fogo depende de diversos fatores, como a quantidade de chuva após o evento e a intensidade das chamas. Porém, os dados mais recentes reforçam que a ausência completa de queimadas é mais prejudicial do que sua presença controlada.
Outro ponto que o estudo destaca é a necessidade de políticas públicas adaptadas à singularidade do Cerrado. Diferente de florestas como a Amazônia e a Mata Atlântica – onde o fogo é, de fato, um inimigo da biodiversidade –, o bioma savânico brasileiro exige abordagens de conservação que levem em conta sua relação histórica e ecológica com as chamas. Nesse sentido, a proteção de pequenos fragmentos vegetais distribuídos em diferentes regiões, incluindo aqueles frequentemente queimados, pode ser mais eficaz do que a tentativa de preservar grandes áreas contínuas.
As savanas do mundo, afinal, se formam de formas distintas. Na África, são os grandes herbívoros que mantêm a vegetação rasteira ao consumir massa vegetal e impedir o avanço das árvores. Na Austrália, é o clima árido que limita a densidade florestal. Já no Brasil, com menor presença de grandes mamíferos e maior umidade, o fogo assume o protagonismo na manutenção dos campos abertos e na promoção da biodiversidade local.
Portanto, entender o Cerrado é também aprender a conviver com suas chamas. Quando manejado com sabedoria, o fogo não é ameaça, mas ferramenta. Ele rejuvenesce o bioma, fortalece suas espécies mais resilientes e perpetua um ciclo natural que garante à savana brasileira sua incomparável diversidade. Como revelam as áreas queimadas e, meses depois, novamente floridas, o fogo no Cerrado é menos fim – e mais um novo começo.



